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NO, I'M NOT A HUMAN: A UNIÃO É ESSENCIAL PARA SOBREVIVER AO FASCISMO

  • Foto do escritor: Max Fernandes
    Max Fernandes
  • há 2 dias
  • 8 min de leitura

Jogos de horror virais tem sido sempre motivo de desconfiança para mim. Quando algum desses cria um burburinho ao redor, a tendência pessoal é que eu o veja com reticências por causa do maior destes, Five Nights at Freddy’s. Fiquei obcecado pela lore durante todo aquele ano que Scott Cawthon decidiu montar seu plano de aposentadoria lançando várias continuações num curto período de tempo. Até eu jogar de fato, FNAF parecia muito interessante, mas a mecânica pouco aprofundada e repetida a exaustão, os usos de jumpscare como forma barata de horror e a eventual realização de que pouco daquela história fora criada de fato pelo autor, sendo, na realidade, muito mais um conjunto de ideias da internet das quais ele se apoderou conforme a franquia evoluía, me deram um desconforto grande demais com esses fenômenos de jogos indie que me fez não aproveitar direito a maioria, como Doki Doki Literature Club, por exemplo.


Dessa maneira, as semanas subsequentes ao lançamento de No, I’m not a Human se tornaram uma grande conversa comigo mesmo: “Esse jogo parece interessante, tem uma carinha maravilhosa de analog e me disseram que é relevante politicamente, mas será que os criadores sabem o que estão fazendo com isso?”. Até eu perceber que precisava correr atrás do prejuízo de passar dez meses sem jogar nada de novo e “wow, preciso de videogames, tenho que falar sobre em um site novo chamado Fliperifa que fundei com minha não-tão-grande amiga Iara Vilela”, não pensava mesmo em testar.


E então, dei uma chance a No, I’m not a Human. Devo dizer que não me decepcionei de forma alguma com o jogo, essencialmente pela quantidade de substância que pude tirar de sua narrativa. Sinceramente, jogá-lo foi um passeio por várias referências que eu pouco tinha memória, como 10 Cloverfield Lane (o melhor Cloverfield, aliás), Quarentena, Aniquilação ou Until Dawn, que auxiliam na construção da história horripilante do jogo.


Texto do jogo em que diz: "Nossos primeiros relatórios parecem confirmar isso" | Imagem: The Gamer
Texto do jogo em que diz: "Nossos primeiros relatórios parecem confirmar isso" | Imagem: The Gamer


A premissa do jogo é simples: estamos em um período de erupções solares que tornaram sair de casa de dia impossível. Todavia, uma espécie conhecida como Visitantes está por aí durante a noite, se disfarçando de humanos e matando pessoas. Porém, você é alertado logo no começo: não é difícil manter os visitantes fora. O problema é que você precisa ser hospitaleiro com aqueles que chegarem em sua porta como forma de afastar um certo perigo iminente que vai te pegar se você estiver sozinho…


Agora que você já sabe como o jogo funciona, chegou a hora de falar de… Fascismo. Para escrever esse texto, conversei bastante com o Senhor Genérico, aliado de longa data e youtuber de jogos que participará de alguns dos projetos no Fliperifa. Ele tem um vídeo muito interessante sobre a franquia de jogos de ação Warhammer 40.000 que trata, justamente, da ideia de que Warhammer cria a situação perfeita para que um regime fascista seja totalmente justificado como única alternativa numa situação anti-social. Alienígenas brutais estão atacando e a única maneira de combatê-los é com um estado totalmente armado, impiedoso e repressivo.


No, I’m Not a Human tem um efeito parecido a essa situação anti-social. Uma das características mais importantes para o funcionamento de um governo fascista é a identificação de um inimigo para concentrar o ódio crescente da população e desviar do real problema. Ainda assim, se os judeus ou os árabes são discriminados apenas por serem diferentes dos europeus, os visitantes são, virtualmente, problemas sérios a serem extinguidos. Eles, de fato, vão te matar enquanto você dorme. Mesmo que não saibam exatamente se são visitantes ou não. Essa talvez seja a falha principal da mensagem do jogo, mas chegaremos lá.

O perigo representado pelos visitantes é fatal | Imagem: Arquivo Pessoal
O perigo representado pelos visitantes é fatal | Imagem: Arquivo Pessoal


Um dos encontros mais importantes é logo nos primeiros dias, quando uma garota que trabalhava como caixa de supermercado busca abrigo em sua casa. Ela está apavorada, sofrendo e precisando de ajuda. No começo do jogo, confiei bastante em sua integridade por conta da situação que ela se encontrava. Não tardou para que os outros hóspedes aparecessem no dia seguinte mortos, seus corpos esquartejados presos em sacos de lixo para serem descartados. As verificações dos sintomas sempre eram positivas contra a jovem. Não queria acreditar que ela era um deles, mas, eventualmente, me vi obrigado a aceitar a dura verdade e matá-la, ainda que o desespero da pobre coitada fosse visível. Ela nem sequer sabia que era uma visitante. E eu a matei para me livrar de um dos monstros que estava matando meus colegas. Não foi agradável…


Eles. A terceira pessoa serve para se referir a um indivíduo, ou um grupo de indivíduo, que não é o emissor (eu) ou o receptor (tu) daquele discurso. “Eles” são o outro nessa situação. Os visitantes não são eu e nem você. O jogo até tem uma explicação para o que são os visitantes, e as verificações recorrentes implicam fortemente que você pode estar se tornando um visitante, além da possibilidade de se juntar ao culto aos visitantes em um dos finais, mas nada disso significa que você seja um visitante. Você é apenas um morador de um subúrbio querendo manter-se vivo. Apesar disso, se a situação de constante vigilância e afastamento do diferente é a mecânica principal, isso não significa que o jogo te estimule a manter esses comportamentos, pois você precisa construir uma comunidade para se proteger do Homem Pálido…


A figura do Homem Pálido é curiosa. Ele é extremamente ameaçador, na realidade. Seu físico esguio, claramente inspirado em Christian Bale no filme O Maquinista ou sua feição alegre e relaxada, com seus diálogos crípticos e apenas uma pergunta: “você está sozinho?”. Muitos nos contam sobre o Homem Pálido, sobre como foram seus encontros com ele na vizinhança, e como ele sempre parecia estar com a vantagem. O Homem Pálido nem sequer esconde que ele é um visitante, apenas surge em sua porta. As vezes na sua janela, decapitando soldados da FEMA. Se estiver sozinho, ele entra. Derruba sua porta e o resto é história.

O Homem Pálido é uma figura curiosa e inspirada no personagem de Christian Bale no filme O Maquinista | Imagem: Arquivo Pessoal
O Homem Pálido é uma figura curiosa e inspirada no personagem de Christian Bale no filme O Maquinista | Imagem: Arquivo Pessoal

A função principal do Homem Pálido é justamente a de servir como uma checagem do jogo. Você PRECISA abrigar pessoas na sua casa. Você tem que construir comunidade. O primeiro final que alcancei foi, resumidamente, me esconder no porão até a crise passar, com os sobreviventes que ainda estavam em casa no último dia. Conseguimos sobreviver por estarmos todos em grupo. Outro final curioso, o “final do horror cósmico” (daria muito trabalho explicar e esse texto não é um estudo sobre a lore) reflete sobre a insanidade gestada pelo isolamento. A mensagem de No, I’m not a Human é clara, praticamente um dilema do ouriço levado às últimas consequências. Sim, as pessoas vão te ferir, mas se isolar não é a solução, pois o homem é um animal social e ficar sozinho é igualmente doloroso.


Porém, a desconfiança não é mecânica apenas pela existência dos visitantes. Até agora, pouco falei da FEMA, a organização fascista governamental que caça os visitantes por aí. A FEMA é um dos elementos mais curiosos desse jogo, com soldados totalmente cobertos dos quais você ouve no rádio sobre seus sequestros e execuções. Nunca é explicado como esse grupo se tornou tão poderoso, mas a FEMA representa uma ameaça maior do que o Homem Pálido até, pois o grupo bate em sua porta e leva embora alguns dos seus hóspedes com o objetivo de realizar uma perícia para descobrir se são visitantes. Quase sempre os levados são os seus humanos – em meu primeiro playthrough, perdi a filha do vizinho e tive vontade de desligar e recomeçar o jogo, pois eu prometi que cuidaria dela! Como eu pude deixar isso acontecer?


Nenhum dos meus amigos retornou quando a FEMA partiu. Muitas pessoas acreditam que a FEMA é uma organização de visitantes e o jogo até dá indícios para isso, mas prefiro não levar essa possibilidade a sério. Eles são apenas fascistas. O final em que seu protagonista se torna um integrante da organização é curioso por conta dessa ideia: você perde sua identidade, seus motivos para continuar lutando, e passa a ser apenas uma engrenagem no grande esquema das coisas, irrelevante, como os fenômenos fascistas fazem com seus asseclas.


Um dos persoangens que podem ser acolhidos é um ex-integrante da FEMA | Imagem: Arquivo Pessoal
Um dos persoangens que podem ser acolhidos é um ex-integrante da FEMA | Imagem: Arquivo Pessoal

De qualquer maneira, um grupo que bate em sua porta e leva alguns dos seus colegas pelo pretexto de fazerem parte de um grupo específico de pessoas não é um conceito exatamente alienígena para nossos tempos. E sim, nossos tempos. O fascismo, um fenômeno do século XX que está tendo um refluxo no século XXI, sempre utiliza dessas ferramentas para manter o grupo marginalizado sob constante pressão, mas não é como se a FEMA lembrasse o mais famoso desses fenômenos – a tão desprezível Gestapo. Não: a FEMA é muito mais próxima do ICE. A Gestapo não escondia os rostos, sabe? Você acompanha as atrocidades do FEMA como nós, aqui no Brasil, acompanhamos os crimes do ICE: através dos meios de comunicação. No, I’m Not a Human é um pouco mais retrô, então tudo que você tem é um telefone, um rádio e uma televisão de tubo – o que remonta a estética do horror analógico que o jogo se baseia –, mas é o suficiente para ouvir sobre assassinatos, incêndios criminosos, sequestros e todo tipo de brutalidade vindo da FEMA.


O que me faz questionar um pouco das ideias do jogo. A metáfora se torna falha quando você percebe que sim, os visitantes são um problema. Eles não são imigrantes, árabes, judeus, negros, queers. Eles são uma ameaça de fato. Acredito que os autores contornem bem esse problema quando o ICE — digo, o FEMA – usa do pretexto de capturar os vigilantes, mas prioritariamente lhe retira seus hóspedes humanos. Ainda assim…


De qualquer maneira, No, I’m not a Human permite múltiplas interpretações e pode resultar em várias discussões. Você pode associar esse jogo a muitos fenômenos associados ao fascismo, inclusive poderia escrever mais algumas páginas sobre como o McCarthismo é fundamental para entendermos os visitantes. Você pode associar o confinamento à pandemia do COVID-19. Mas eu, particularmente, enxergo esse jogo como um sinal para o futuro destinado especificamente aos jogadores que ousarem experimentá-lo nessa temporada de Dia das Bruxas (o texto está sendo escrito em outubro).


O fascismo está emaranhado na política mundial nos tempos da pior crise capitalista da história. Estamos vivendo a erupção de um movimento de massas que não podemos temer, mas combater, pois já o vencemos antes. A solução de No, I’m not a Human para a crise é a união. A solução real também. Seja para se proteger de agressões do estado ou do seu familiar irreconhecível a essa altura do campeonato. Vivemos tempos difíceis que exigem organização. Não gosto de acreditar que estar em casa é efetivo, mas construir uma rede com seus iguais, como é feito no jogo, sem dúvida ajuda bastante. O horror já foi utilizado, tanto por conservadores e reacionários quanto por progressistas, para ressaltar o que o grupo via como errado na atual sociedade civil e compôs ótimas críticas sociais. No, I’m not a Human não é diferente, mas ele sinaliza uma saída clara, pelo menos para o cidadão médio. Para o gamer. Então, gamers, estamos cercados por Homens Pálidos e FEMAs. Vamos buscar alguma solução prática para barrá-los?


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